quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Gloria do Bonfim


A Yalorixá Glória Bonfim é uma das mais expressivas e autênticas vozes que conheço. Seu canto primitivo, forte, verdadeiro, despretensioso e absolutamente intuitivo é um diamante bruto que representa, de forma emocionada, a cultura dos terreiros de candomblé, trazida pelos negros africanos e mantida aqui pelos mestiços brasileiros.

Resolvi registrar o que ouvi, cumprindo tanto quanto possível o papel de repórter, interferindo minimamente e apenas quando necessário. O repertório inédito foi recolhido da obra de Paulo César Pinheiro, compositor preferido da cantora, que a ela o entregou como um presente. Todas as músicas abordam temas ligados ao candomblé, e muitas têm a forma de cantigas de santo, utilizadas em rituais. Chamei alguns dos instrumentistas e amigos que mais admiro, músicos que entendem e respeitam essa linguagem e que já admiravam a Glória das rodas na minha casa. Todos acertaram em cheio. A característica dessas cantigas se iniciarem sempre por uma invocação, puxada pelos babalorixás ou yalorixás e respondida pelo coro das yaôs, foi respeitada por todos, se impondo aqui a qualquer concepção de arranjo. A energia que rolou no estúdio deixou claro que os orixás ficaram satisfeitos e aprovaram nossa homenagem. Axé!

A história dessa baiana é comovente e cinematográfica. Nascida em Areal, um pequeno povoado no interior da Bahia, Glória era requisitada desde muito menina pra cantar nas redondezas, em festas de casamento, batizados etc. Ela conta que muitas vezes foi tirada da cama por seu Tutu, festeiro do lugar, vestindo um camisú (daqueles de cambraia com calçola igual) e levada no balaio de um jegue pra animar essas festas. Não havia rádio e muito menos disco naqueles lugarejos em que a festa dependia dos músicos e dos cantores da região. Filha de Domingas e Miguel, a pequena intérprete de 8 anos agradava a todos com sua voz potente. De cima de um caixote de madeira, sua voz era ouvida de longe, garantindo boa dança e boa festa! Década de 60, o rock chegando às capitais, e o hit da pequena cantora era a valsa Viagem, de João de Aquino e Paulo César Pinheiro. A partir daqueles dias, a menininha começa a sonhar em ser cantora de verdade.

Mas a valsa e tudo aquilo ficaria pra trás quando, acreditando em falsas promessas de estudo e de um futuro melhor, Domingas entrega a filha aos cuidados de uma senhora. No lugar de cartilha, a menina recebeu uma colher-de-pau e o trabalho doméstico não remunerado. Voltou a subir em tamboretes, agora não mais pra cantar, mas pra alcançar o fogão e a pia. Acabou se tornando uma cozinheira de mão cheia! Aos quatorze anos veio pro Rio de Janeiro, fugindo da tal tutora. Sem documentos, pai nem mãe, tinha apenas a cara, a coragem e o dinheiro do ônibus. Trabalhou de doméstica e, dez anos depois, veio parar em minha casa. Meu filho Julião - que também estréia como violonista nesse disco - tinha apenas dois meses. Glória trabalhava sempre cantando.

Desde a primeira vez que a ouvi, já senti o que estava ali. Voz rascante e afinada, com volume impressionante, precisão rítmica admirável. E tinha cultura, ancestralidade. O repertório era irretocável. Comecei a reparar também que Paulo César Pinheiro, o dono da casa, era o compositor mais constante, com diversos parceiros: Mauro Duarte, João Nogueira, Eduardo Gudin e, naturalmente, João de Aquino. Um dia daqueles, ainda sem conhecer sua história, passei pela cozinha enquanto ela cantava Viagem, e brincando, insinuei que ela estaria puxando o saco do patrão. Ela se assustou, me pegou pelo braço e me fez sentar pra explicar. Eu falei que aquela música era do Paulinho, ora! Com os olhos cheios dágua, ela me disse não acreditar que alguém inventasse música e, menos ainda, que estivesse trabalhando na casa do criador daquela, que a acompanhava desde criança. Eram dois fenômenos: Glória achava que músicas não eram feitas, mas que apenas existiam como as cantigas de santo do candomblé. E não imaginava, absolutamente, que estava há quatro anos convivendo com o autor da sua maior lembrança! Claro que esse trabalho que apresento era inevitável. E vocês vão concordar!

Luciana Rabello

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